Assisti ao filme Homem com H, sobre a história do Ney Matogrosso, e algo dentro de mim foi atravessado de um jeito profundo demais para simplesmente deixar passar.
Há filmes que tocam, e há filmes que escancaram. Homem com H, escancara. Não pela performance, pelos figurinos, pelos palcos, mas pela inteireza com que ocupou cada espaço onde pisou. E talvez, acima de tudo, por ter ocupado a si mesmo sem concessões.
O que me atravessou de forma mais potente foi a relação dele com o pai militar. Uma figura dura, rígida, de ordens, comandos e silêncios. Uma figura que representa o mundo que quer formar filhos retos, discretos, controlados. E Ney, desde cedo, era curva, era cor, era inquietude. E ali, nessa convivência entre o que se é e o que se espera que sejamos, nasce uma das maiores dores da autoimagem: a de ter que diminuir para caber.
Quantas vezes, ao longo da vida, nós também tentamos nos encaixar em moldes que não nos pertenciam? Quantas vezes seguramos o riso, o gesto, a roupa, o desejo... Só para não decepcionar o outro? Só para não desobedecer à narrativa de como “deveríamos” ser?
Mas o que me Ney me ensinou, e o que me fez querer escrever esse texto, é que há algo mais perigoso do que se perder do amor de alguém, do que se afastar de um pai, de uma família, de um sistema. O que nos devasta, de verdade, é se perder de si.
Quando a gente deixa de reconhecer a própria imagem no espelho, quando começa a viver como uma cópia pálida de quem fomos, quando passamos a temer o julgamento mais do que desejamos a liberdade... É aí que a autoimagem se fragmenta.
E, ainda assim, mesmo com o peso da repressão, Ney permaneceu. Cantou. Se pintou. Se reinventou. Se vestiu de si mesmo, em camadas de brilho, coragem e contradição. Ele não tentou ser perfeito. Ele tentou ser inteiro. E conseguiu.
A imagem que construímos de nós é feita de muito mais do que o que vemos: ela carrega a memória do que escutamos, as ordens que internalizamos, os silêncios que suportamos, as escolhas que ousamos fazer mesmo sem garantia alguma. Ney nos mostra que ser livre não é ser rebelde por capricho, mas por sobrevivência.
Liberdade, no caso da autoimagem, não é fazer o que se quer, é sustentar quem se é. E isso exige um amor-próprio que não nos ensinaram, mas que podemos aprender. Exige olhar no espelho e não fugir. Exige falar por si, mesmo quando a voz treme. Exige desejo.
Nada segurou o desejo de Ney de ser ele mesmo. Nem o pai, nem o sistema, nem a ditadura, nem o moralismo. Porque ele entendeu, talvez desde cedo, que se trair é mais mortal do que ser traído. Que não há vitória alguma em agradar o mundo inteiro, se no processo nos apagamos de nós.
Esse filme me lembrou por que escolhi trabalhar com a autoimagem. Porque a dor de não se reconhecer é uma dor silenciosa, mas que consome. Porque sustentar a própria verdade num mundo que vive de aparências é um ato político, poético e profundamente curador.
Que a sua imagem te pertença. Que ela seja a tradução mais honesta do seu sentir, do seu corpo, da sua história e do seu desejo. E que o medo de se perder de si seja sempre maior do que o medo de não caber no mundo.
Com verdade,
Fernanda
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