O autorrelato do corpo: Entre a fotografia, a memória e a verdade de Si
- Fernanda Preto
- 26 de set.
- 3 min de leitura

Fotografar a mim mesma nunca foi apenas um exercício estético. O autorretrato, para mim, é uma prática de atravessamento. Hoje, em um daqueles dias em que o corpo parece pesar mais do que o habitual e o silêncio interno é quase ensurdecedor, busquei a câmera. Não para me validar, embora sempre seja, ou para mostrar algo ao mundo, mas para me observar. E percebi, mais uma vez, que é justamente nos dias em que não me sinto bem que a fotografia se torna mais necessária.
O autorretrato me conduz a um lugar de estranhamento produtivo. Ao me ver em imagem, percebo não apenas o contorno do meu rosto ou a posição do meu corpo, mas a complexa rede de afetos, memórias e sensações que sustentam aquele instante. A fotografia, neste sentido, é um campo de fricção: ela expõe tanto quanto revela, denuncia tanto quanto acolhe. É, paradoxalmente, o espaço onde me sinto julgada por mim mesma, mas também onde encontro a possibilidade de reconciliação.
Minha história com a fotografia não começa em 2002, quando iniciei a faculdade de artes e fiz meus primeiros autorretratos conscientes. Ela começa muito antes, quando minha mãe, incansável, registrava minha infância em álbuns que até hoje consulto como quem revisita um mapa afetivo. De alguma forma, minha identidade foi moldada pela insistência dela em me guardar em imagens. E é curioso perceber como, ao me tornar fotógrafa, repeti e ao mesmo tempo subverti esse gesto materno: não apenas fui fotografada, mas passei a me fotografar. Se antes era objeto, agora me torno sujeito, autora e testemunha do mesmo corpo.
Essa retomada é o que chamo de retorno à minha verdade. Porque cada autorretrato é também um ato de escrita: uma escrita imagética que atravessa pele, luz e sombra, e que compõe uma narrativa de si. Não à toa, a filosofia e a psicanálise já apontaram para a importância do olhar na constituição do sujeito. Somos vistos antes de nos vermos, e essa anterioridade funda nossa experiência de identidade. O espelho inaugura a ilusão de uma totalidade, mas é a imagem, fotográfica ou mental, que nos acompanha na busca por compreender quem somos.
Foi nesse entrelaçamento de memória, corpo e imagem que nasceu o desejo de criar o método CorpoMemória. Um caminho que não separa estética de ética, mas que entende que toda imagem é atravessada por desejo, dor, tempo e contexto. O CorpoMemória não surgiu como técnica, mas como necessidade: a de sustentar minha própria história sem precisar apagá-la ou embelezá-la. É a possibilidade de olhar para si e perceber que o corpo não é vitrine, é território, é abrigo, é testemunha.
Escrevo agora sobre essa experiência em meu livro. E sinto que, ao colocar em palavras o que a fotografia me ensinou ao longo de mais de vinte anos, também ofereço às outras pessoas a chance de se verem de modo mais profundo. Não se trata de ensinar a fotografar, mas de mostrar como a fotografia pode ser ferramenta de autoconhecimento, um dispositivo para reconhecer a vida que pulsa na gente, inclusive quando estamos frágeis, inseguros ou deslocados.
Nos dias em que não gosto da minha imagem, paradoxalmente, são os dias em que mais aprendo com ela. Porque é nesse desconforto que se desvela uma verdade incômoda: rejeitamos justamente as partes de nós que mais pedem acolhimento. O autorretrato, então, é menos sobre beleza e mais sobre coragem. É um gesto político e poético, um enfrentamento da cultura da aparência, mas também um mergulho íntimo naquilo que sustenta nossa subjetividade.
Em breve, este livro estará disponível. Por enquanto, deixo aqui a pergunta que tem me acompanhado:
Qual imagem sua você ainda evita olhar, e o que aconteceria se, em vez de fugir dela, você se deixasse permanecer?