
Viver uma vida inteira obedecendo aos padrões alheios é um assombro silencioso. Acreditamos que estamos fazendo escolhas, que estamos conduzindo nossos passos com autonomia, mas no fundo, seguimos um roteiro escrito antes mesmo de nascermos. Boa Sorte, Léo Grande escancara essa mentira. Um filme que não apenas desarruma certezas, mas nos faz encarar o espelho sem a maquiagem do socialmente aceitável.
Nancy, a personagem de Emma Thompson, viveu como muitas pessoas vivem: uma existência bem-comportada, previsível, encaixada nos moldes que lhe foram entregues. Professora, esposa, mãe. Cumpridora de expectativas. Mas, por dentro, algo sempre esteve fora do lugar. E então ela se permite um encontro. Um encontro que, na superfície, é sobre desejo e prazer, mas que, no fundo, é sobre um direito ainda mais radical: o de existir para si.
Léo Grande, o acompanhante interpretado por Daryl McCormack, não é apenas um profissional do sexo. Ele é um espelho. Um convite. Uma fissura na armadura rígida da personagem, onde o desejo pelo outro se transforma, pouco a pouco, em desejo por si mesma. Ele está ali, oferecendo um olhar sem julgamento, uma presença livre de condenações, algo que raramente experimentamos: ser vistos sem a lente das expectativas.
Mas Nancy não é a única a se transformar. Léo também se vê atravessado por esse encontro. Ele, que aprendeu a construir uma persona impecável para satisfazer seus clientes, se depara com alguém que quer mais do que a ilusão de controle e prazer instantâneo.
Nancy desafia sua própria imagem, e ao fazer isso, desafia a dele também. Ele se permite vacilar, se permite não ser apenas o reflexo do desejo alheio, mas um homem em busca de sua própria identidade. No jogo de olhar e ser olhado, Léo começa a perceber que sua humanidade vai além do que oferece, e que ele também tem o direito de querer algo mais.
E no centro dessa busca, há um vazio doloroso. Léo carrega o peso do abandono, da rejeição de uma mãe que deixou de aceita-lo após um episódio acontecido na família. Essa ausência de amor primário o moldou, fez dele alguém que precisou se reinventar para sobreviver. O corpo que ele oferece aos outros é, de certa forma, uma tentativa de preencher o buraco deixado por esse desprezo.
Mas, diante de Nancy, ele percebe que ser desejado não é o mesmo que ser aceito. E que sua autoimagem, construída sob a necessidade de validação externa, talvez precise ser desconstruída.
O que nos define, afinal?
Os papéis que ocupamos ou aquilo que sentimos quando ninguém está olhando?
O filme nos faz essa pergunta com a delicadeza de um toque e a brutalidade de uma verdade que relutamos em aceitar: por mais que os encontros nos despertem, no final, somos nós que precisamos nos reconhecer. Nenhum outro pode validar quem somos, além de nós mesmos.
Boa Sorte, Léo Grande é uma súplica para que a gente se liberte das amarras invisíveis que carregamos. Para que conseguimos abandonar a culpa de querer mais. Para que a gente encontre no desejo, seja ele sexual, emocional ou existencial, um caminho de retorno a nós mesmos.
É um filme que escava camadas de repressão e nos deixa diante da pergunta essencial: quem seríamos, se não tivéssemos medo de sermos nós?
Com verdade,
Fernanda Preto
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